Dona Carmelita Dona Carmelita é escrota. Todos os dias, às três da manhã, ela cozinha dobradinha. A janela da cozinha dela dá direto para a janela do meu quarto. O cheiro é forte, ocupa a casa inteira. Já requisitei que faça no horário comercial, quando estou trabalhando fora. Ela se recusa. O cheiro me acorda toda madrugada e me embrulha o estômago. Penso em me mudar todas noites, mas com meu salário é impossível. Ela é desocupada. Já se acostumou à vida atoa, pois se aposentou há duas décadas. Isso torna viável que ela faça a comida em qualquer periodo do dia, mas ela insiste em cozinhar na madrugada. Liguei para o síndico e reclamei da escrotisse de Carmelita. Ele tomou o lado dela. Afinal, são amigos, são comparsas. Disse-me que cada um tem o direito de cozinhar quando bem entender. Com isso eu concordo; por isso reclamo com o síndico, ao invés da policia. Entretanto, a política da boa vizinhança exige flexibilidade. Se é possível ajudar o outro, então é necessário. Decidi abordar o problema de uma maneira diferente; resolvi dar a Carmelita algo para fazer -- roubei um de seus gatos. Cuido bem dele em casa. Gosto do animal. Meu intuito é apenas transformar velha desocupada em velha atarefada. Demorou três semanas até perceber o sumiço. Só que o tiro saiu pela culatra. A velha continua fazendo seu cozido, mas agora todos seus gatos miam a noite, como se também só tivessem percebido agora. O gato na minha casa permanece em silêncio. Ele sabe onde está. Agora é meu amigo, me entende. Antes de sair para o trabalho, deixei o gato no hall do apartamento da velha. Hall não é lugar para gato, mas ele ficou pouco tempo ali. Ela logo saiu de casa e o encontrou. Passa na portaria do prédio todas manhãs para pegar jornais e perguntar por cartas. A noite seguinte a dobradinha nem me atrapalhou tanto, já que os gatos ficaram em silêncio. Pouco depois disso, encontrei Carmelita no elevador. Ela me contou toda a história do sumiço de um dos seus gatos. Transformou dois dias em cinco minutos, e acho que já se extendeu demais. Achei que ouvir a historia nos tornava mais intimo. Por isso pedi denovo: - Por favor, dona Carmelita, faça sua dobradinha depois que eu sair para o trabalho. - Se não fizer cedo, ela não fica pronta para o meu almoço as onze horas. - Por favor, coma um pouco mais tarde. - Não convem comer mais tarde, porque senão o dia fica todo atrasado. - A senhora me acorda todo dia com a sua comida. Pelo menos varie um pouco o prato. - Não é sempre que eu faço dobradinha, mas não tem nada que eu goste mais. Então faço sempre mesmo. Até porque me lembra do Rodolfo. Sabia que ele não deixava passar uma semana sem comer dobradinha? Todo domingo nós iamos ao mercado central e comprávamos para a semana inteira... Hoje em dia lá está um absurdo de caro, por isso compro no açougue ali da esquina. - Desconhecia. Agora a senhora me desculpe, mas preciso correr para o trabalho, senão chegarei atrasado. Acumulei mais um insucesso e, ainda por cima, quase me atrasei para o trabalho. Ao menos a conversa me deu uma ideia: requisitar uma visita da vigilância sanitaria ao açougue da esquina. Enviei uma carta aquele dia mesmo. A vistoria passou no fim do mês. Multaram o açougue por algumas violações menores, mas continou aberto. Seguiu vendendo dobradinha. Fui ao açougue e comprei toda dobradinha que eles tinham. Isso impediu que fizesse dobradinha por dois dias, mas logo estava devolta à ativa. A solução era cara e ineficaz. Fiz por impulso, meu dinheiro era insuficiente para repetir a dose. Minha vida toda eu fumei apenas do lado de fora do prédio. Quando batia a vontade eu descia, e fumava na rua. Dessa forma, eu mantinha minha casa sempre com bons ares. Um dos dias que acordei, resolvi fumar na janela do meu apartamento. Fumei a madrugada toda. Obra do acaso, a minha cabeça estava em branco. Fumei por vontade de fumar. Fumei ali por preguiça de descer. Essa tática funcionou surpreendentemente bem. No dia seguinte Carmelita me procurou. Combinamos que eu deixaria de fumar e ela faria sua comida só depois de eu sair. Tudo funcionou bem por oito meses. Nesse periodo eu fui diagnosticado com pressão alta e tive que largar o cigarro. Imagino que a velha descobriu a novidade, pois um mês depois que parei de fumar ela voltou a fazer seus pratos matutinos. Eu não tinha mais meu trunfo, mas fui conversar com ela sobre nosso acordo. - Não ligo mais se você fumar, eu não quero parar de fazer minha dobradinha -- disse Carmelita. - Então tá. -- foi tudo que eu soube responder. Depois disso passei dois anos de cão. Acordava a maioria das madrugadas. Quando tive coisa muito importante no dia seguinte, cheguei a passar a noite em um hotel. Um mês atrás ela descobriu que tinha câncer no intestino. Dali em diante foi rápido; morreu ontem pela tarde. Fui ao enterro e fiquei quieto em meu canto. Não disse uma palavra. Vi o padre rezando por ela. Vi várias outras pessoas rezando também. Eu aguardei. Estou no cemitério -- todos esses túmulos... Faz uma pensoa pensar na vida. Faz a vida parecer irrelevante. É irrelevante, mas é tudo que tenho. Momentos, sentimentos, desejos, esperanças; enfim, tudo que eu tenho é um conjunto limitado de memórias e desejos. Sabe-se lá quantas memórias falsas. Sabe-se lá quantos desejos que nunca se realizarão. No dia da minha morte não sobrará nada -- isso sabemos muito bem. Carmelita Trindade Costa Magalhães, eu estou aqui em cima de seu túmulo e só vem uma coisa na minha cabeça: já vai tarde.