I Andando pelas montanhas de Minas Gerais com um sábio do nordeste, elogiei o que via. Foi nessa hora que o sábio me disse: _ A parte mais importante destas montanhas é a vista? Eu não soube o que responder, graças a deus ele continuou antes que eu vacilasse: _ Se você fechasse os olhos durante todo percurso, estar aqui seria o mesmo que estar numa esteira em seu quarto? _ Praticamente. -- respondi quase que com convicção. _ Então a parte mais importante destas montanhas é a vista. II Descendo a montanha eu trupiquei o dedão do meu pé. Gritei sem mesmo pensar: _ Ai meu pé! Cai no chão e abracei a minha perna que, confortada, deu acesso fácil aos dedos cutucadores de ferida. _ A dor que você sente vem desse pé? _ É, meu pé que eu trupiquei. _ Se você não tivesse esse pé, você sentiria dor nele? _ Não, é claro que não. -- respondi talvez até com excesso de confiança. _ Então a sua dor vem desse seu pé. III No pé da montanha eu encontrei o sábio do sul. Ele nunca mudou de país, cidade ou mesmo casa. _ Se você nunca mudou, como veio parar em Minas Gerais? -- eu perguntei. _ Sou do sul de minas. -- ele me explicou. Não prestei muita atenção à explicação dele porque quem passou na minha frente foi a filha mais bonita que eu já vi. Nós conversamos e fizemos coisas que meu pudor não me permite contar. No dia seguinte acordei bem cedinho, não era nem nove horas da manhã. O sábio estava sentado numa cadeira de madeira na entrada de sua casa. Ele nem percebeu que eu aproximava; se assustou quando eu disse: _ Oi. Bom dia. _ Sim, sim. Um bom dia para você também. Ele não parecia olhar diretamente para mim, fiquei preocupado. _ Tudo bem com o senhor? _ Ah sim. Tudo bem, tudo bem. -- respondeu como se ainda não tivesse notado minha presença -- A minha filha -- se interrompeu com a própria continuação -- a Beatriz conversou comigo hoje cedo. _ Mesmo? O que ela disse? _ Ela me falou que gostou muito de você. Me disse que gosta muito mesmo. Não pude esconder meu sorriso. Era sem dúvida muito bom ouvir aquilo. _ Vejo que isso te contenta, rapaz. _ É que... Bem... Eu... -- graças a Deus, ele me interrompeu antes que eu conseguisse juntar mais de duas palavras. _ Me parece que talvez você não consiga descrever o que queres com as palavras. _ Na verdade não mesmo. Não há palavras. _ Você diria que não consegue exteriorizar? _ É, eu diria bem isso. _ E se você tivesse várias bocas, muito mais ouvidos, diversas mãos. Você acha que mudaria alguma coisa? _ Não, acho que daria no mesmo. _ Você acha que mais sentidos ou menos sentidos alterariam sensação que tens agora? _ Se eu não tivesse ouvidos, nem olhos, nem tato, nem nada eu certamente não conseguiria ficar sabendo disso. _ Ah! A não ser que você imaginasse tudo isso, não é? _ É verdade, nesse caso daria no mesmo. Se eu fosse louco o suficiente para acreditar na minha imaginação... _ É, é. Louco o suficiente. Ele não falou mais nada naquele dia. Ficou apenas levitando pela casa. IV A casa do sábio do sul não era especialmente confortável ou bonita, mas por causa das outras coisas eu fiquei alguns dias. Conheci um pouco mais dos jeitos desse sábio. O que mais ocupou meus pensamentos foi sua abdicação de todos prazeres corporais. _ Sim, sim. Eu me abdico de todos prazeres do corpo. Teorizei, questionei, levantei hipóteses e provei teoremas. Criei a história do homem que se abdicou dos prazeres corporais. Criei várias histórias. Cada gesto era preciso, mas havia algo que certamente não se encaixava no modelo de uma pessoa que abdicou todos prazeres corporais. _ Apesar de ter abdicado de todos prazeres corporais, você teve uma filha. Isso foi antes de você se abdicar? _ Sim, sim. Beatriz Menina. Antes... Nada foi antes. _ Foi depois, então? _ Antes, depois... Não é nada disso. Parei um pouco para pensar na minha próxima pergunta. Eu estava muito instasfeito com as respostas. _ Uma pessoa que abdica de todos prazeres do corpo pode fazer sexo? _ Sim, sim. Essas coisas não funcionam sempre. V Fui acordado uma manhã pelos olhos de Beatriz. Esse olhar afujenta o sono, a tarde, a noite e até a fome. Acho que te conheço todo -- ela sussurrou a meu ouvido. Eu te conheço toda, respondi em troca. Da ponta do cabelo ao dedão do pé, ela me falava, por fora e por dentro, de pé e deitado. Te conheço no verso e no reverso, continuei, do alto de uma palmeira e no fundo d'um buraco. _ E sabe o que? -- ela me perguntou. _ Você sabe que sim. A gente agora devia se desconhecer um pouco. Eu me apaixonei foi conhecendo você. -- eu que disse. _ Eu sabia que você diria isso. -- ela me respondeu -- A gente foi feito para conhecer um ao outro. Levantamos sem dizer mais nada. Fomos ao quintal para roubar os ovos das galinhas e ao fogão para fritá-los. Foi na hortinha que eu catei o chá e foi na pia que ela pegou a água. Depois de cear o desjejum, já nos despedíamos quando rolou um certo pesar. _ No quintal tem uma gameleira e dentro dela mora um rapaz que vê o futuro. -- Menina me contou. _ Ele vê o futuro certo? _ Quase sempre. _ Você quer ir lá para saber o nosso? _ Deus me livre. Foi com a barriga fria, cheia de chá quente, que eu fui embora para o oeste. VI _ Sai da frente que atrás vem gente! -- gritou o andarilho d'Oeste. Passou correndo que levantava poeira. Quase um maratonista. Por esporte, corri ao lado do rapaz: _ Oi moço, para onde vai com tanta pressa? _ Me vou para a praia. Ver o mar! _ Não seria mais fácil chegar no mar correndo para o lado de lá? _ Talvez fosse, talvez não. O importante é seguir sempre se movimentando para uma única direção. Se eu sigo reto por aqui eu sei que uma hora eu chego. _ Eu faço diferente. As vezes vou para o Norte, as vezes para o Sul. As vezes até paro um pouco. Descanso, sabe? _ Mas assim você nunca vai chegar no mar! _ É verdade. VII Eu cansei de seguir o andarilho d'Oeste antes mesmo de acabar o assunto. Deus me livre e guarde, há pessoas que correm feito filhos da mãe! A poeira que ele deixou para trás não demorou muito. Ela se assentou e eu pude voltar a ver tudo com calma. _ Vum! Vum! -- gritava um velho sentado em um tronco de madeira próximo à trilha. O tronco estava úmido, Deus sabe como, em tal calor de verão. _ Vum! -- eu respondi. _ Que esse sujeito se passa rápido até demais que dá sono. _ Acho que posso concordar com isso. _ Ontem pesquei no rio três peixes vivos! _ Me pergunto como poderiam estar mortos. _ Sabe porquê esse moço passou zunando? _ Ele tinha um lugar para ir. _ Se tinha! Sabe que eu comparo ele com uma árvore na chuva. _ Árvores são estáticas e ele parecia ser tão rápido. _ Escute-me. Não é atoa que este banco está molhado até domingo. As árvores são bons abrigos durante a chuva, mas péssimos quando para de chover. _ Ainda não sei se entendo ao certo. _ É de se pensar. Não é de se entender. _ Não sei se elas são abrigos tão bons mesmo na chuva. Pode cair um raio do mesmo jeito, talvez até pior; esse que é o grande risco da chuva. Além disso, você continua se molhando. _ Você já matou a charada, só não percebeu. -- disse o velho às gargalhadas. VIII Depois de falar com o velho do tronco eu desisti de seguir qualquer trilha. O que é que tem no meio dessa floresta? Pensei, virei e fui. Quando a gente anda sem trilha, anda bem mais devagar, mas também presta mais atenção. É fácil de se perder, a não ser que você queira mesmo é ficar no meio da floresta. É difícil de andar, a não ser que você não esteja com pressa. Na mata fechada a gente não sabe direito se faz noite ou se as árvores que tapam o sol, se está chovendo ou se são as árvores que estão salivando. Na mata fechada eu estava escuro e molhado. Quente e úmido, pronto para ser devorado por algum animal desumano. Encontrei sozinho um buraco profundo. Escuro. Cercado por árvores, como tudo mais à minha volta. Um castanheiro esparramava sua raíz buraco abaixo. Mesmo andando sozinho na floresta nós chegamos ao mesmo lugar que outros já chegaram, pensei. Uma vez que eu já me dei ao trabalho de descrever o buraco e a raíz que dá acesso à sua profundesa, achei que deveria simplesmente descê-lo. A medida que eu descia, mais claro ficava. Quando cheguei ao fundo do poço, a luz quase cegou minhas pupilas acostumadas com a penumbra. Me estranhou não haver ninguém ali para conversar. Após alguns curtos e medrosos passos, trombei em alguma coisa que eu não pude ver. Ainda tentava entender o que havia acontecido, quando o trombado abriu uma sombrinha e se revelou. _ Você brilha no escuro! -- eu disse. _ Como é que é? -- respondeu-me. _ Você abriu a sombrinha. Agora eu posso te ver, na sombra da sombrinha; você brilha no escuro! _ Você parece meu irmão, ou. Vou te levar até ele. _ Seu irmão chama Ou? -- disse eu fazendo pouco da gíria. _ É. Não gostou? _ Deixa pra lá. Mesmo brilhando no escuro era difícil de ver o moço como um todo. Uai, tava tudo muito claro, tava difícil de ver. O que eu vi foi que ele parecia uma pessoa meio gorda, rechonchuda. Com uma mão grande demais da conta. Era tudo muito plano naquele buraco. Não tinha muita árvore, era um matinho e uma castanheira aqui, um carvalho acolá. Pelo menos é o que eu podia ver. Andamos quase uma hora até chegar no que parecia uma dessas cidadezinhas do interior, onde a cidade se mistura com o mato em volta. Só que a cidade lá era mais arrumadinha do que a maioria das que eu conheço. Chegamos em frente de uma casinha, guardada por um bicho de uns dois metros. Bizarro. Suas pernas não terminavam no chão, mas no céu. Andava de lá para cá dando passos ao vento. Suas mãos encostavam no chão mas sua pegada era sentida a distância. _ Esse é seu irmão? _ Não. Esse é só um geobionte. Eu falei que meu irmão é parecido com você, rapaz! _ É verdade. _ XÔ GEOBIOTE! O geobionte saiu da frente e nós entramos na casinha. Realmente, o irmão dele lembrava a mim, um pouco. Ele me olhou e disse: _ Eu sabia que você viria hoje. _ Como você poderia saber? -- perguntei. _ Eu fiz uma tiuria. _ Tiuria de que? _ Tiuria de tudo, de nada. De cima, de baixo, dos lados. Do antes, do depois e do agora. A tiuria completa do universo. Aqui -- entregou-me um livro de centenas de páginas -- leia! _ Uai! Cadê o seu irmão? _ Deve de que ele fechou a sombrinha. Depois de três meses de leituras e expliações do autor, eu disse: _ Interessante. _ Interessante?! Essa é a tiuria final! _ Por isso que eu disse que era interessante. _ E nem precisa de experimentos para comprová-la! Qualquer sistema completo pode ser reduzido a essa tiuria. Se a natureza se comporta de forma lógica, então não há nada mais a ser compreendido, está tudo aí. _ Mas Gödel não tinha dito que isso seria impossível? _ Acho que está bem claro que não é impossível. _ É, a tiuria dele era outra. _ Agora eu sou o rei do universo, Ou. _ E agora? _ E agora o que? _ Vamos jogar pedrinhas na lagoa? _ Formô. _ Eu consigo fazer ela quicar 10 vezes. _ Dúvido! _ Quer valer, sr. Rei do UniversOU? _ Quem perder vai ter que tomar leite de geobionte! _ Eu nem sei o que é isso, mas eu aposto só porque eu sei que eu não vou perder! Acho que eu acabei perdendo.