Criei um site dedicado a meus contos. Assim tenho a oportunidade de customizar os design e as funcionalidades mais facilmente que neste blog escrito em perl (que é uma linguagem que eu nem domino muito.)

Espero que gostem: Canto dos contos.

Fiz ele em python usando Flask :)

Posted Sun 06 Apr 2014 14:39:10 UTC

Entre todas formas de morrer eu escolhi justamente esta. Talvez a mais dolorosa. Não tenho certeza. Como teria? Não experimentei as outras.

Meu cotovelo bate na garrafa d'água. Garrafa d'água cai. Pego no ar.

“Se você quisesse morrer, teria pego essa garrafa tão rápido?” — pergunta a garota.

“Se o que acabo de dizer é o que acredito como verdade, como eu teria essa resposta? Se, pensando o que eu penso, peguei essa garrafa em plena queda, você acha que eu saberia te dizer o porquê?”

“Parece um desperdício de esforço para quem vai morrer. Só isso.”

Realmente parece. Eu não vou morrer, mas que coisa! Eu já evitei a morte tantas vezes. De todas possibilidades, escolhi a mais dolorida. A mais demorada. Quem pode amar a vida tanto assim?

Naquela viagem que batemos o carro eu podia ter escolhido não colocar o cinto. Quando nadamos em mar aberto, poderia ter escolhido nadar mais um pouco. Naquela viagem que fizemos, podia ter tido coragem de saltar da pedra até a lagoa lá embaixo. De todos fins de semana, escolhi sempre o mais seguro. Como quem fez o contrário poderia amar mais a vida?

“Acho que só ama mesmo a vida quem já a viu escapando diante dos olhos.” — disse a menina.

Eu te amo. Isso não é o bastante? Desejo morrer por isso. Não é o suficiente?

Eu acho que vejo o futuro.

“Eu vejo o futuro, eu acho.”

“Vê nada. Você só pensa demais no que pode acontecer. Nada disso é real. São só possibilidades.”

Maldita garota dos meus pensamentos! Ela sabe mais sobre mim que eu mesmo. Se pudesse casava com ela. Se ela não estivesse na minha cabeça nem nada.

Karen, me desculpe por ter batido seu carro. A gente poderia ter dado certo, né? Não fosse a Cris…

Eu queria ser um cientista quando pequeno. O professor Pardal. Dentre tantas pessoas, por que fui me espelhar logo nele? Solitário que só. Nem Cristina, nem Karen. Ele não tem ninguém. Só suas invenções malucas, que funcionam apenas para os outros. Quem já viu um cientista pegando uma onda de 36 metros? Todavia, me pergunte quem bolou aquela prancha.

De todas formas de morrer, escolhi morrer aos 87 anos. É agora ou nunca. Quem vai morrer depois disso? Não há mais mulheres que eu possa dizer: eu te amo. Guardei essa frase por tanto tempo e agora não consigo mais usá-la. Viverei mais para o que? O que será feito nesses 3 anos? Nada. Vamos agora. Vamos para onde eu já poderia ter ido há muito tempo.

Não fui antes de teimoso. Quando me escondi atrás daquela caçamba. Pulei feito uma criança, enquanto os adultos brincavam de bang-bang. Poderia ter feito alguma coisa. Poderia ter salvo alguém. Acima de tudo, poderia ter morrido ali mesmo.

Cristina, você já me amou?

“Não.”

Cale-se voz ingrata. Eu sei que ela gostava de mim.

“De certa forma…”

Se nem você, Cris. Então quem?

Não tive muita escolha. Acho que a Camilinha foi a primeira que me amou. A gente se conectou pela Internet. Eu sempre fui um cara mais de Internet do que da vida. Ela me amou e eu, portanto, a amei.

Casamos na igreja de Lourdes. Tivemos três filhos. As vezes eu acho que eles entenderam mais da vida que eu mesmo.

Quando fiz 80 anos Camila me deixou. Fui ao seu funeral. Como poderia deixar de ir? Até pensei em não comparecer. Sou apenas um velho cansado. Quem sentiria minha falta? Com certeza não a Camilinha, que dispensou a minha presença antes dos 10 anos de casamento. Meus filhos choraram. Eles parecem entender a morte. Eu usei óculos escuros para disfarçar os olhos secos.

Quem diria que eu ficaria casado durante tanto tempo? O que acha?

“É surpreendente mesmo. Você nunca deu chance a ninguém.”

“O que você sabe sobre chance? Amei a todas como se fossem as últimas.”

“Esqueceste de amar como se fossem a primeira.”

Lá vem essa moça cheia de frasezinhas. O que isso significa? Eu tentei o que pude. Nossa filha sabe bem. Eu sempre estive lá para ela. Mesmo quando ela foi embora de casa. Não é culpa minha. Nem tudo é culpa minha!

“Ela vem para o seu funeral.”

Do que você está falando? Eu ainda vivo muitos anos neste hospital. É verdade que ando sem ânimo de rever todos dias as mesmas notícias de 50 anos atrás. Entretanto, permaneço vivo. Não preciso de uma outra alma para viver. A minha própria basta!

Por que não perdoei a Cris naquele carnaval que ela transou com o Flávio? Por que não perdoei o Flávio? Não namorei nenhum dos dois por conta disso.

Vivo nada. Meu coração não aguenta essa agitação toda de pegar garrafa d'água. Morro agora nas mãos de um doutor jovem. Minutos atrás, ele apalpava a bunda de uma enfermeira. Agora usa as mesmas mãos para tentar impedir que meu coração pare. Não tem jeito, doutor. Já estou de saída. A hora é agora.

Diga para a faxineira não se preocupar. Eu peguei a garrafa d'água em pleno ar. Não molhei o chão nem nada. Diga a ela que eu dei minha vida por ela. Diga que eu a amo.

“Doutor! Me ajuda!” — gritei enquanto puxava o jaleco dele pelo colarinho.

Posted Wed 05 Mar 2014 05:40:24 UTC Tags:

Teodora formou-se em direito. Passou na prova da OAB e virou advogada criminal. No entanto, ela não estava feliz. Que crimes mais mesquinhos ela tratava! Pessoas mesquinhas, infantis, tristes. Por que alguém escolheria conviver com assassinos, presidiários, enfim, a escória da sociedade? Isso não está bom.

Resolveu que deveria ser professora universitária. Conviver com jovens pensadores. Futuros filósofos, historiadores. Chega de direito. Vou fazer mestrado em filosofia, pensou.

Estudou Platão, Sócrates, Nietzsche e tantos outros que ela nem se lembra o nome. Mestrou-se em um deles. Não precisou lembrar dos outros para passar no concurso público para professora universitária. Agora é professora mestre doutora Teodora.

Primeiro dia de aula, que sentimento bom! Gostoso ensinar. Gostoso ver quem quer aprender. Passava dicas, livros e documentos. Lecionava introdução à filosofia para o curso de direito.

Passaram-se meses. Cada vez mais Teodora era digna do epíteto professora. Não mais tratava de burocracias do tribunal. Agora tratava de corrigir trabalhos, atribuir notas e validar atestados médicos -- quem imaginava que em quatro meses de aula tanta gente ficasse doente?

O fim do semestre chegava e era hora de passar o trabalho final da disciplina. Uma dissertação sobre a ementa do curso pareceu apropriado. Assim exigiu. Três semanas é mais que o suficiente para o aluno aplicado que seguiu a disciplina. Até mesmo aqueles que tiveram de faltar algumas aulas por motivos de saúde seriam capazes de se inteirar do que faltava antes de escrever a dissertação.

Nem todos trabalhos eram as reflexões que ela imaginava. Existiam algumas frases interessantes. Entretanto, ela esperava que ver a filosofia pelos olhos daqueles jovens, poderia mudar a essência de sua percepção do mundo -- não foi bem assim. Também, não vamos exigir tanto. São apenas jovens.

Quando já estava perdendo as esperanças, uma dissertação chamou a sua atenção. O autor parecia ser conhecedor do direito. O texto ligava vários conceitos filosóficos de outras épocas à conceitos jurídicos atuais, sem ser enumerativo -- o que era a grande qualidade. A forma não era perfeita, algumas ligações eram forçadas, mas era um texto que fazia pensar. Finalmente uma dissertação como ela esperava: inesperada.

Depois dessa veio outra exatamente igual, depois mais outra. Três cópias da mesma dissertação por três autores diferentes. Teodora marcou uma reunião com os três: Rômulo, Carla e Cornélio. Mandou por e-mail para que ficasse registrado. Ninguém faltaria por falta de aviso.

Quando os três se apresentaram na sala de Teodora, ela começou a conversa:

- A pauta desta reunião é um assunto muito sério: cópia de trabalho universitário. Vocês três entregaram o mesmo trabalho final da disciplina Introdução à Filosofia.

Rômulo disse:

- Eu sou o verdadeiro autor desse trabalho. Eu escrevi todo o texto e coloquei no meu pendrive. Os outros dois devem tê-lo pego na minha mochila e copiado para o laptop deles.

Carla disse:

- Eu que sou a verdadeira autora desse trabalho! Escrevi todo o texto, depois copiei do meu laptop para o computador do xerox e imprimi. Talvez tenha deixado meu trabalho no computador do xerox. Lá acharam e copiaram.

Cornélio disse:

- Esses dois são ladrões e mentirosos! Eu coloquei meu trabalho no pendrive e fiz o que Carla disse que fez: copiei o trabalho para o computador do xerox para imprimir. Certamente os dois pegaram de lá!

Teodora:

- Vou dar 0 para todos os três. A não ser que me digam quem é o verdadeiro autor. O trabalho é individual, só pode haver um verdadeiro autor. Se os três fizeram juntos, o trabalho é inválido. Se um só fez e os outros copiaram, então o trabalho é valido. Nesse caso, quem fez merece os pontos. Os outros nada merecem. Inclusive, são passíveis de punição pela secretaria do curso.

- E o princípio doin dubio pro reo? Melhor absolver um culpado que condenar um inocente. Ele não se aplica para nossa disciplina? -- perguntou Cornélio.

- Por mais desgosto que eu tenha ao deixar dois culpados impunes, acredito que seja melhor isso do que punir um inocente. O que seria de uma sociedade democrática se um cidadão de bem não pudesse confiar que a justiça não lhe falharia? De todo modo, acho que vocês estão mentido.

- Rômulo e Cornélio estão de fato. -- disse Carla.

- Não é isso. Acho que os três fizeram o trabalho juntos. Agora orquestraram esse dilema para ganharem os pontos!

- Que provas tens disso, professora? -- perguntou Rômulo -- E a inocência presumida? Estou te dizendo que sou inocente. Devo ser tratado como tal até que se prove o contrário! Não haverão provas, pois a minha inocência é um fato.

- Tá. Mas não acredito nessa estória suas!

- Professora, acha que nossa história não é plausível? -- perguntou Carla -- Você acha impossível um desses dois terem pego meu trabalho lá no xerox? Eu consigo pegar o trabalho de quase qualquer pessoa da turma lá!

- Plausível é. Mas vocês três tem a mesma estória. No mínimo dois estão mentindo!

- Então professora, como você vai decidir quem aqui é inocente e quem é culpado? -- perguntou Cornélio.

- Com muito desgosto eu vou ser obrigada a dar total para os três. O trabalho estava muito bom. Merece total. Não posso prejudicar um inocente para conseguir punir dois criminosos.

- A senhora é justa, professora. -- disse cada um do seu jeito.

Os três alunos foram curtir suas férias. A professora passou as férias matutando o que poderia fazer. Conversou com outros professores. A maioria argumentou que aluno não tem direito. Muitos a acharam muito inocente. Uns poucos concordaram. A maioria achou graça.

No semestre seguinte, depois das férias, o xerox passou a exigir cadastro e senha para usar seus computadores.

Posted Wed 20 Nov 2013 19:43:57 UTC Tags:

“O amor nos faz adolescentes, tudo de novo.”, disse Nené cortando um pedaço de queijo minas com uma faca. Apoia o pedaço com o dedão e leva à boca.

“Quem ama nunca envelhece?” perguntou a mocinha da aula de física. Ela se mostrava interessada. Observou todo o caminho do queijo minas até a boca do rapaz. Com os olhos, acariciou as bochechas de Nené.

“Envelhece, mas envelhece com friozinho na barriga.”

“Você está sentido isso agora?” a menina não desviou o olhar dos olhos do colega. Nené não sabia mais o que fazer com o queijo, que ainda estava na boca. Olhou para baixo, limpou a garganta e disse gaguejando:

“A-agora?”

Não precisava dizer mais nada. Bonitinha apenas sorriu e deixou o silêncio tomar conta das almas inquietas. Estavam sozinhos na penumbra da cozinha de uma casa mal acabada. Raios do sol poente escapavam pelas frestas da janela, suspendendo pequenos pedaços de poeira. Quartel general da revolução estudantil, a casa delimita o fim da área de uma ocupação ilegal. Atrás dela amontoam-se famílias esperançosas. Dentro da casa se produz planos para um Brasil melhor e gabaritos para prova de cálculo.

“Como assim? Por quê? Acho que não.” respondeu nervoso que só. O dicionário passava pela cabeça do rapaz, mas ele não conseguia definir em que ordem as palavras deveriam ser combinadas. Deixou que elas se encontrassem sozinhas.

“Se eu gosto de você?” essa pergunta levou dois fôlegos de um homem para ser dita. Ainda assim, o ar continuava escarço.

Percebendo tudo, a estudante de física continuou sorrindo. Deixou o rapaz se atropelar. Ela também não sabe exatamente o que quer. Ainda não é o momento de dizer nada. O momento é de assistir, encantada, àquela demonstração feia e tão bonitinha. Colocou a mão no braço do rapaz e disse:

“Quer um copo d'água?”

O que ela queria dizer com isso? Ela gosta ou não gosta? Ela está com sede ou não está? O que pode ser dito? O que tem de ser dito agora? Quais as opções? Melhor dizer sim: “Quero sim, por favor.” respondeu desviando o olhar para a mesa. A mocinha levantou-se e pegou dois copos de uma prateleira.

Bonitinha provavelmente não sentia o mesmo que Nené. O que ela diria a ele? Melhor não alimentar algo que ela pode não cumprir. Será que ele acha que há esse calor todo entre os dois? O que será que está havendo? A colega de sala tinha dúvidas muito sérias, objetivas e profissionais. Algumas envolviam ela gostar de Nené, mas a maioria passava longe. O rapaz só queria água.

Depois de uma era de silêncio, ela se sentou à mesa com dois copos cheios. Ofereceu um a Nené, que tomou dois goles. Que água que nada; nem com sede estava! Não pensou em nada para dizer, então tomou mais um gole.

“Eu adoro essas coisas de política.” afirmou Nené desesperado. Doido pela aprovação da moça, que era uma conhecida ativista. Daquelas que estão onde quer que haja um cartaz hasteado.

“Que coisas?” perguntou a garota, sem saber as mil associações que passavam na cabeça de Nené. Pois agora ele teria que fazer mil e uma para respondê-la.

“Você não gosta? É que, tipo, por exemplo, é...” — em respeito a Nené, prefiro cortar por aqui o diálogo. Faço também com o seu interesse em mente. Você poderia sofrer um ataque de aflição.

Obrigada a ouvir o que Nené dizia, a menina perdia o interesse a cada nova palavra. Lá pelas tantas, já angustiada pela conversa, pensou: eu não sei muito bem nem o que achar. Impossível se deixar levar. Não há com que se envolver. Não há ritmo. Estamos trocando uma série de frases truncadas. Há algum sentido nelas, mas nenhum nexo. O que ele está tentando dizer? Nem sei mais se ele gosta de mim. Vai ver ele só é estranho mesmo.

Pois na cabeça de Nené tudo estava estranho. Talvez houvesse alguma faísca de paixão no começo da conversa, mas agora só há pedidos de desculpa em forma de argumentos. Danças de acasalamento disfarçadas de desculpas. Nada mais faz sentido. Lindinha não é mais uma pessoa: é um pensamento.

Neste momento Nené entrou em um estado de sono absoluto, onde tudo que fosse sentimento seria embaralhado na cabeça e transformado em desespero. Ajudem-me! Gritavam todas frases do rapaz; sem que para isso fosse necessário mudar a postura ou erguer a voz. Não eram mais necessárias duas pessoas naquela sala, uma vez que Nené já havia sido consumido completamente por si mesmo. Portanto, a futura física saiu, sem ser percebida, e nunca mais voltou.

(produzido com análises de Ellen Analítica e Renata Alcantra)

Posted Sat 16 Nov 2013 20:31:42 UTC Tags:

Conheci na piscina uma menina que batia na água com uma boia espaguete. Colocava naquilo toda sua força. Aproximei-me e perguntei com ar de graça: “bates na invisível tristeza da miséria tropical?”.

“Bato no 7”, respondeu-me.

Continuei minha brincadeira: “Em minha época pintava-se o 7.”. A menina não respondeu. Continuei a conversa por conta própria: “O que o 7 fez para você, mocinha?”

“O 7 é malvado. Ele me diz coisas ruins.”, olhos fixos na água.

“Você ainda está muito novinha para conhecer o que é mau e o que é bom. O que ele fala para você?”

“Diz para eu bater nele!”, nesse momento ela ficou vermelha. Estourou de raiva. Dava para ver a fumaça saindo pela cabeça. Descontou tudo ná piscina.

“Você o obedece?” perguntei. A menina começou a gritar. A mãe, agitada, veio correndo. Abraçou a criança. “Calma, filha. Está tudo bem. Quem é esse? O 7?”. A criança não dizia nada, apenas soluçava. A mãe me olhou e esbravejou: “Você não tem vergonha, não?! Um homem velho desses! Pare de amolar minha filha! Você nem existe!”

Assustado, quem acabou preocupado fui eu. Como assim não existo? Quem sou eu, então? Voltei para casa alarmado. Abri a geladeira e de lá tirei pinga. Virei à goladas. Vovó Betânia já dizia: “não há cabeça quente que uma cachaça gelada não esfrie.” Ela estava certa.

Dancei, despreocupado, a sinfonia número 11. Não sei se é possível dançar isso. Parece que não, porque eu cai. No chão fiquei. O teto vi. Rodopiando e dançando; enquanto eu lambia o tampo da mesa de centro. onze 11 e dois 3. Todos coloridos. Todos saborosos. Tutti frutti. Desatei a gritar como se fosse sexta-feira 13. Após duas horas de grito, um par de brutamontes se convidaram abruptamente pela porta da frente. KADABLUM! Arrombaram! Antes que eu os oferecesse um chá, amanheceram-me num leito de hospital.

Era manhã, quando acordei na enfermaria. Exigiram-me o plano. Eu não tinha plano ou saúde, então me expulsaram pela porta dos fundos para não dar ideia fraca.

Neste mundo doido, voltei a encontrar Olívia. Para quem não sabe, essa é a menina da piscina. Parecia um ano mais velha, mas ainda se lembrava de mim. Apresentou-me à bela 8, que já estava grávida quando casamos. Isso não atrapalhou a festa! O quintal da menina Olívia estava todo enfeitado e a mãe dela estava lá. O pai também. O cachorro. O irmão. Estavam todos felizes com nosso casamento. Dona 8 estava radiante. No fim do casório ela deu a luz a um par de gêmeos: dois unzinhos. Ela virou um belo 7 colorido. Um 7! Fiquei alarmado!

“Vai dá tudo certo” disse Olívia. Não sei se acredito. Por que casamos tão rápido? “Porque assim foi. Todo 7 é 7, mas nem todo 7 é igual.” respondeu a garota, que gosta de ler mente. Sensato. Assim como ela disse, foi.

Eu não podia ficar nesse outro mundo para sempre. Meio que sem me despedir, voltamos à realidade. Graças a Deus! Voltamos a 7, os uns e eu.

As coisas andam bem com a gente. Ninguém mais teve desses surtos. A gente se preocupa um pouco com a cabeça de um dos gêmeos. Diz querer trabalhar em escritório. Ele é novo ainda; a gente acha que isso é fase.

Posted Tue 24 Sep 2013 03:21:18 UTC Tags:

Este é um ensaio que eu não consegui terminar :(

“Felicidade é aquilo que não se tem.”

O silêncio pairou no ponto de ônibus. Ele já estava lá há mais tempo. Fora brevemente interrompido pela lamentação de um velho barrigudo com barba de 20cm. O velho não sabia mais sobre a vida que qualquer um outro, mas foi o único que teve coragem de conversar. Outros permaneciam em seus celulares:

“Tem um velho muito viajado aqui no ponto de ônibus.” escreveu no celular um jovem. O jovem escreveu para uma jovem. Ele gostava dela e ela também, mas eles ainda não haviam contado um ao outro.

“O que ele está fazendo?” perguntou a moça virtual. “Agora ele está deitado no banco do ponto. Acho que dormiu. Ele estava muito doido. Andando de lá para cá. Chegou no meu ouvido e disse alguma coisa sobre felicidade.” “Que medo! Toma cuidado João!“ “Ele tá dormindo, não tem perigo. É só um velho, qualquer forma.“ “Esse povo é perigoso! Eu estou chegando na academia, mais tarde a gente se fala, ok? Bjão!“ “Bjão!“

João suspirou e colocou o telefone no bolso. Sem perceber, o velho já estava ao seu lado. Sussurou no ouvido de João: “Você não tem.”

João, que estava em pé, perto do banco do ponto, fez uma careta e foi para mais perto do meio fio. O velho deu um passo na direção de João e disse para todos ouvirem:

“Então acha que é felicidade!”

Começou a rir feito um louco. Caiu sentado no chão. Parou de rir. Ficou encarando João. O jovem olhava para o velho de vez enquando, mas evitava encarar. Olhava só de curiosidade, para saber se o velho continuava olhando. E esse ônibus que não chega? João estava se sentindo incomodado. Pegou o celular e releu as últimas mensagens que havia trocado. Sorriu. Voltou com o celular para o bolso.

“O que você está olhando?” esbravejou João, olhando para o barbudo. Não houve resposta. João continuou “O que você quer? Quer dinheiro?”. Não houve resposta. “Sai daqui, porra! Para de me enxer o saco!”. O velho continuava encarando João, mas não esboçava qualquer reação. Apenas encarava.

Posted Mon 09 Sep 2013 18:21:00 UTC Tags:

As ondas quebram-se lentamente na praia. Às nove horas da noite não há plateia na areia. Quebram-se sem ninguém para olhar. Ainda assim, gotas espirram para todos os lados. A gota mergulha pelo ar. Pequenos grãos de sal e gotículas de água misturam-se com o vento. A gota arrebenta-se na areia. A onda vem e a recupera o mar. Porém, parte dela, as gotículas, os pequenos grãos de sal continuam voando pelo ar. Voam até encostar, gentilmente, na testa suada de Rô. Onde mistura-se, inseparavelmente, com o rapaz. Lelê também mistura-se com a maresia. Os dois jovens trocam palavras e sentimentos em um quiosque na praia.

Os dois são amigos há dois anos. Conheceram-se na praia, enquanto corriam no calçadão depois do trabalho. Rô tropeçou e torceu o tornozelo. Lelê sentiu a dor do colega de cooper e resolveu ajudá-lo. Ela deu uma carona até o hospital, onde diagnosticou-se a torção. Desde então, encontram-se duas vezes por semana na praia. Sentam-se em um quiosque para conversar toda quinta, depois do exercício.

Nesta ocasião, Rô estava fazendo um monólogo sobre suas mulheres. Lelê escutava pacientemente enquanto ele discursava sobre suas frustações amorosas:

“… essa menina era mesmo incrível. Linda. A gente tinha muita sintonia. Perfeita, para dizer a verdade. O problema foi exatamente esse. Nossas opiniões eram muito parecidas: acabamos descobrindo que nenhum de nós dois gostavam de mim.

Depois — ou antes. Bem, não importa. Teve a Carla. Que menina complicada! A gente custou para começar a ficar. Ela sempre parecia me querer, mas na hora que eu fazia qualquer investida, ela desistia. Acho que ela nunca gostou mesmo de mim. Ela queria que eu fosse outra pessoa. Me disse para deixar a barba crescer, porque gostava de homem com barba. Depois disse que era para cortar. Falava para eu ser mais decidido. Eu, bobo, tentava. Ela falava pra eu tentar menos ser engraçado, depois dizia para eu tentar mais. Tudo que eu queria ter uma namorada. Então eu fazia tudo.

Passado alguns meses, enchi o saco de todas essas exigências. Fiquei muito puto quando ela falou que eu deveria raspar o cabelo. Terminei com ela; disse que ela não gostava de mim, gostava de alguém que ela inventou. Eu não sou esse cara de cabeça raspada que ela fica imaginando!” parou por alguns instantes esperando alguma reação da amiga, que apenas balançou a cabeça positivamente. “Carlinha, com um enorme sorriso, me abraçou e, pela primeira vez, disse que me amava. Voltamos a namorar, mas depois de um mês ela me deixou para um homem de barba. Ela disse que gostava mesmo era de homem que podia crescer uma bela e completa barba.

Outro dia a encontrei aqui na praia. Ela me perguntou se eu finalmente resolvi fazer um exercício físico. Eu disse que não, que estava atrasado para uma festa. Respondeu-me: “típico.”. Me deu um beijo no rosto e falou que a gente devia combinar de se encontrar. Concordei, mas nunca mais procurei. Tem gente que, depois que a gente se livra, é melhor não dar mais chance para o azar, né?”

Rô tomou um gole de cerveja, que agora já estava ficando um pouco quente. Olhou o oceano, onde via-se apenas uma parede escura com pequenas manchas brancas de espuma. Lelê estava brincando com as gotinhas d'água em cima da mesa. Rô continuou:

“Já te falei da Aline? Minha comunistazinha preferida. Em época de eleição, a gente saia de madrugada para arrancar as propagandas eleitorais dos políticos que emporcalham as ruas com suas campanhas. Engraçado que a gente sempre acabava esquecendo de tirar os cartazes com fundo vermelho. A gente passava horas discutindo Marx, Hegel e Smith. Eu juro que, em algumas noites, descobríamos a solução para os problemas do mundo. Entretanto, no dia seguinte, de alguma forma, eu esquecia tudo.

Nós nos conhecemos na faculdade. Um dia eu fui à uma das ocupações da reitoria. Ela estava lá. Baixinha, usando uma bandana vermelha. Gritava a plenos pulmões. Não lembro bem o que. Admirei a sua paixão. Nunca vi ninguém gritar assim; nem pelo Flamengo.

Depois de um tempo, todo mundo resolveu fazer uma pausa para o lanche. Para mim foi ótimo: era o momento de me aproximar da garota da bandana. Corri para cozinha da reitoria. Meu plano era fazer um sanduiche para ela. Cheguei antes de todos. Me pus a fazer sanduiche para quem quisesse.

Quando ela chegou na cozinha, nem me olhou, foi direto para a fruteira. Ofereci a ela um dos meus sanduíches. Não quis; disse que não gosta de comida industrializada. Dei o sanduiche para outro. Peguei uma das frutas também. Começamos a conversar.

A gente foi ficar pela primeira vez quase um ano depois disso. Eu já estava no sexto período da faculdade. Ela estava no quarto. Festa na casa do Marcos. Conhece o Marcos? Já te falei sobre ele, eu acho. Ele sempre fazia umas festinhas. A noite estava fria. Ela me desafiou a pular no mar. Eu disse que iria se ela pulasse também. Fomos os dois.

Pulamos na água gelada — não estava tão fria quanto pensávamos. Mergulhamos de roupa mesmo. Ideia de bêbado, né? A gente ficou um tempo brincando. Eventualmente saimos da água. Ela me disse que estava com muito frio. Então eu disse — coisa mais baranga — “eu te esquento com a minha paixão!”. Segurei ela pela cintura e beijei. Ficamos um tempão namorando na praia. Já estávamos quase secos quando voltamos para festa.

No dia da reitoria, quando nos conhecemos, a gente conversou sobre manifestações. Eu expliquei como admirava a paixão dela. Disse que ainda estava procurando a minha.

Eu ainda a tenho no facebook, mas a gente nem se fala muito. Ás vezes ela me deseja feliz aniversário. Eu sempre desejo feliz aniversário para ela.

Uma vez fizemos uma viagem à Paraty. Nunca chegamos ao destino. Pegamos uma kombi emprestada com um amigo. Daqui até lá são umas três ou quatro horas. A gente gastou dez para chegar até a metade. Parávamos em cada praia, qualquer lugarejo ou paisagem diferente.

No primeiro dia nós dormimos na kombi. Numa praia afastada das cidades. Dava para ver as estrelas. Quanto tempo a gente passa sem ver as estrelas, não é?

No segundo dia a kombi estragou. Conseguimos contactar um mecânico. Em algum momento eu reclamei da kombi ser velha. Disse algo sobre como é bom um carro zero. Ela não gostou. Foi como começou nossa primeira discussão sobre a minha cabeça de capitalista. Foram coisas assim — coisinhas — foram elas que acabaram com a nossa relação.

Um dia eu estava assistindo, descompromissadamente, um jornal na TV. Ela estava no quarto lendo alguma coisa. Cometi o erro crasso de chamá-la para assistir uma reportagem que ia começar. Achei a chamada interessante. Fiz ela parar de ler alguém importantíssimo para ver uma reportagem manipuladora?! De um jornal burguês, ainda por cima! Que estupidez! Discutimos a noite toda.

Uma vez eu copiei uma reportagem da veja e coloquei no formato do blog de um argentino que ela gostava de ler. Até traduzi para o espanhol. Dei uma roubadinha: tirei dois parágrafos que achei que ela não fosse engolir. Ela adorou a postagem. Quando terminou de ler, dissertou com sua peculiar paixão pelas coisas. Achei muita graça. Aline ficou incomodada com minha risada. Perguntou o que estava acontecendo. Eu contei como ela caiu na minha armadilha. Nesse dia eu a peguei de jeito. Dessa vez ela não achou ruim de ter lido uma reportagem da veja. Achou engraçado. Me deu um beijo alegre. Nesse mesmo dia nos encontramos com alguns amigos. “Advinha quem anda lendo veja!”, eu falei. Foi uma noite gostosa.

Sabe quando eu percebi que a amava? Foi uma quarta-feira que começou como qualquer outra. Nós iamos nos encontrar no almoço, mas o carro dela estragou. Acabamos não nos encontrando. Combinamos um jantar.

Fui buscá-la em casa no fim da tarde. Chegando lá, o cachorro dela estava passando mal. Levamos ao veterinário. Ele prescreveu remédios. Deixamos o cão na casa da mãe dela.

Finalmente, nós conseguimos sair de lá e ir ao restaurante. A duas quadras do restaurante, fomos assaltados. Roubaram tudo, até o carro. Passamos na delegacia para fazer um BO. Quase meia noite, resolvemos ir a pé à praia antes de voltar para casa. Só para relaxar um pouquinho. Conseguimos convencer um dos quiosques a nos dar um coco. Estávamos mortos de fome.

Sentamos na areia e compartilhamos o coco. Sentamos lado a lado, de frente para o mar. Ela colocou a cabeça no meu peito e suspirou. Ficamos sentados por uns vinte minutos sem dizer nada. Apenas trocodando leves suspiros e caricias. Uma onda grande quebrou muito próximo da areia. A água espirrou em cima da gente. Fechamos os olhos e viramos o rosto; eu para direita, ela para esquerda. Abrimos os olhos. Não precisávamos dizer nada. Eu sabia que ela me amava, ela sabia que eu a amava. Eu sabia que a amava, ela sabia que me amava. Mesmo assim eu falei: “você sabe, né?” ela respondeu: “sei. Você também sabe, né?”. Continuamos olhando um nos olhos do outro. Depois de quase um minuto, completei: “eu te amo.”. Ela: “eu também te amo.” Nos abraçamos. Ficamos mais uma hora abraçados na praia.

Quem diria que o dia perfeito envolve um assalto, um carro estragado e um cachorro doente?”

Rô tomou mais um gole de sua cerveja, cada vez mais quente. Olhou para os olhos de Lelê, que parecia meio avoada no momento. Ele continuou:

“Um dia eu cheguei em casa — havia uns seis meses que ela dormia lá quase todos dias — e tinha um bilhete em cima da minha cama. Nossa cama. Estava escrito “eu sinto muito”.

Procurei-a por toda casa, mas ela não estava. Fui de carro até a casa dela. Ela atendeu a porta chorando. Perguntei o que houve. Ela me contou. No fundo, eu já sabia o que houve antes mesmo de ler o bilhete.”

Uma lagrima escorreu pela bochecha de Rô. Ele limpou como se fosse uma gota de suor e continuou sua história:

“Ela saiu com um cara do DCE na noite anterior. Eles acabaram dormindo juntos. Chorei, mas não foi choro de ciúme. O que mais doia era o fim. Ela estava cabisbaixa quando termininou de me contar. Eu coloquei a mão no queixo dela. Ela levantou o rosto e olhou para mim. Eu olhei para ela. Nós dois tinhamos os olhos vermelhos, cheios de lagrimas. Dei um beijo no rosto dela e disse adeus.”

Rô virou seu copo de cerveja. Encheu com o que restava da garrafa. Deu mais um gole. Olhou um pouco para o nada. Lelê olhou para Rô, mas esboçou apenas um pequeno franzir de testa de compaixão. O rapaz abriu um sorriso triste e disse:

“Quando a gente começou a namorar ela disse que gostava do meu jeito meio perdido no mundo. Eu a chamava de “minha comunista favorita”. Nunca me preocupei muito com as coisas. Não tenho compromisso com qualquer ideia. A gente não sabia onde isso iria chegar.

A gente se separou quando eu estava no oitavo periodo. No sétimo eu fiz aquele estágio no exterior. Já te falei, lembra? Fui trabalhar em Seattle, na google. Nessa época ela foi para Cuba. Você imagina como foi essa conversa, né? Ela me contou que iria para Cuba um mês antes de eu receber a proposta da Google. Eu pensava em acompanhá-la até Cuba, mas como eu perderia uma oportunidade de emprego como aquela? Fui para o imperio; ela foi para o paraíso.

Quando voltei, estava com algumas ideias de livre mercado, liberalismo. Fiquei só três meses lá, mas percebi certas coisas. Comparei a vida de Seattle com a vida em Cuba. Ela não suportou quando, em uma eleição presidencial, acabei votando no PSDB. Acho que ela nunca conseguiu conviver com o fato de namorar um cara que votasse no José Serra.

Acho que ela foi meu verdadeiro amor.”

Rô suspirou fundo. Virou mais um copo de cerveja e pediu uma garrafa nova. Começou a rir, reclinou para frente e falou em tom de confidência:

“Vou te contar da Cássia! Lê, que mulher foi aquela! Surgiu como se fosse mágica. Sumiu da mesma forma. Conheci no banheiro de um camping. Ela falou que o banheiro feminino estava estragado. Assim começou nossa primeira transa! Em um mês tivemos uns vinte encontros. Ela só gostava sexo. Não conversávamos, mal nos conhecíamos. Mas a gente fazia de lado, de cima, de baixo. As vezes com carinho. As vezes com força. Se juntasse todas mulheres que eu já transei não dava uma Cássia. Não sei nem se esse é o nome verdadeiro dela: Cássia.

Um dia eu não quis ligar para ela. No outro também não. Quando assustei, já tinha passado uma semana. Ela também não me ligou. A semana virou mês. Depois ano. Nunca mais nos vimos.”

Rô olhou o relógio. Lelê viu o celular. Começou a responder uma mensagem. Rô esperou pacientemente. Lelê terminou de responder. Rô voltou a falar:

“Às vezes eu me lembro da moça da varanda. Onde será que ela está agora? Será que continua no Botafogo? Eu nem sei o nome dela.

Uma vez, indo para o trabalho, a rua que eu usualmente passo estava fechada. Desviei meu caminho e passei na frente de um prédio com varanda. Uma varandinha pequena, em uma das quinas do prédio. Vi uma moça na varanda do primeiro andar. Olhei para ela; ela olhou para mim.

No dia seguinte tive que passar por lá de novo. A moça estava na varanda novamente. Trocamos olhares. Desta vez eu sorri; ela sorriu de volta.

Próximo dia a mesma coisa. Continuei passando por lá todos dias para ir ao trabalho. Até mesmo depois que o caminho mais curto voltou a estar disponível. Às vezes eu estava preocupado com o trabalho, mas o sorriso dela alegrava o meu dia. De vez enquanto eu sentia que ela não estava bem, mas acho que o meu sorriso a ajudava.

Certa manhã um homem estava abraçado com ela na varanda. Eu fiquei um pouco sem graça, mas olhei e sorri. Ela me respondeu da mesma forma. Não sei se o homem percebeu, mas eu e ela percebemos. Só nós dois compreendemos o que estava acontecendo. Durante um breve instante, o mundo todo era só eu e ela.

Passaram-se meses. Nossa relação crescia, sem que nunca tivéssemos trocado um olá. Ela passou de um pequeno momento pela manhã para a razão pela qual eu gostava de acordar. Eu dormia cedo para não perder a hora de encontrá-la. Ela sempre sorria para mim; eu sempre sorria para ela.

De repente, numa quente manhã de dezembro, ela não apareceu. Na manhã seguinte também nada. Depois de uma semana sem nos ver, resolvi perguntar ao porteiro do prédio. A menina do primeiro andar — do apartamento com varanda — ela está aqui? Não. Mudou-se para o Botafogo.”

Rô tomou mais um gole. Lelê sorriu. Rô sorriu. Ficaram dois minutos em completo silêncio. Rô pensou consigo mesmo “por que Lelê não fala nada?” As ondas continuaram com seu monótono vai-e-vem. Ninguém notava mais. Ninguém se importava. Lelê e Rô falaram juntos:

“Está ficando ta—” “Depois de vário—” “Pode falar.” “Pode falar.”

Os dois pararam de falar e riram. Rô tomou a iniciativa de falar primeiro:

“Passei muitos meses sem ninguém. Acho que talvez até um ano. Resolvi sair e encontrar qualquer pessoa. Fui a um bar com música ao vivo. Estava determinado a encontrar alguém. Conversei com várias mulheres no lugar.

Encontrei uma moça com quem eu gostei de conversar. A gente foi conversando, conversando. Sabe quando ela acha tudo que você fala engraçado e você também acha tudo que ela diz interessante? Ela me convidou para ir à casa dela.

Mulher rica, ela tem uma casa com vista para o mar. Um pouco afastada da cidade. Um lugar calmo, tranquilo. Durante a noite, ouve-se apenas o barulho das ondas lá no fundo. Ouve-se também barulho de bichinhos, insetos, coisas assim. Nós tomamos um vinho juntos. Conversamos sobre a vida. Foi tudo maravilhoso.

Fomos para o quarto. Na cama, deitamos lado a lado. Eu virei para o lado dela; ela virou de costas para mim. Eu a abracei e ela ficou se esfregando contra meu corpo. Eu a abracei bem forte. Senti como se minha vida finalmente fizesse sentido. Me senti bem. Meu coração não estava batendo mais forte, ele estava batendo manso. Dormi confortavelmente.

No dia seguinte, Paula — esse é o nome dela — estava muito brava. Não quis me levar para casa. Quase não deixou que eu telefonasse para o táxi da casa dela. Me fez esperar do lado de fora. O táxi demorou a beça para chegar. O que houve? Ontem foi tão bom? Nunca obtive respostas.”

Uma moça passou pela calçada roubando olhares de quem estava por perto, até o de Lelê. Não roubou o olhar de Rô: ele estava lembrando de sua vizinha. Voltou a seu monólogo:

“A minha vizinha — alguns dias atrás eu estava um pouco carente. Ainda estou. Resolvi interfornar para todos apartamentos do meu prédio. A maioria das conversas não iam muito bem. Muito homem e gente velha no prédio. Muita mulher que não quer ser incomodada.

Uma delas me respondeu. A gente ficou falando um tempão no interfone. Marcamos de nos encontrar no lobby. Sabe quando não bate? Eu a imaginava muito diferente. Imaginava mais magrinha, mais novinha, mais alta... A gente só conversou mesmo.

Será que eu esqueci o que é namorar? Será que eu já soube? Acho que eu não tenho nada a ver com pessoa alguma. Será que eu vou ficar sozinho para sempre? Como mulher, o que você acha, Lelê? Que tipo de homem sou eu?”

A pergunta pegou Lelê de surpresa — ela não esperava que precisaria falar alguma coisa. Perguntou sem esconder um breve bocejo: “o que?”. Rô fez silêncio por alguns instantes. Depois trocaram tá-tardes e boas-noites. Cada um seguiu uma direção. Rô, misturado com transeuntes ao leste, parecia apenas mais uma pessoa. Lelê não passava de mais uma mulher seguindo à oeste em meio a carros e gente. Os dois completam a paisagem. Um turista tira uma foto. Esse momento será lembrado para sempre.

Posted Mon 09 Sep 2013 18:21:00 UTC Tags:

Tardezinha. Pôr do Sol que vira noite. Anoiteceu. Do alto da praça do papa, um velho mineiro assiste a cidade se preparar para a noite. O homem do algodão doce acende as luzes do carrinho. Velho mineiro compra algodão doce. As luzes da cidade piscam à noite. Cada casa, uma vida. Cada carro, uma cabeça. Ocupado com a Terra, ele não nota as luzes que piscam no céu. Come um pedaço do algodão doce.

Um disco voador pousou ao lado do velho Victor. Ele notou de última hora, quando os grandes pneus do trem de pouso do disco tocaram o solo. Não há sentido em fugir correndo de um trem que voa, pensou. Ainda mais com uma perna ruim. Como bom mineiro, não demonstrou o susto, nem nada. Quem olhasse para Victor não saberia distinguir se ele assistia um pouso extraterrestre ou um pálio fazendo baliza. A não ser pelo algodão doce que se soltou de sua mão, denunciando surpresa.

Uma das bordas do disco se abriu feito uma porta. De dentro saiu um hominídeo alto -- dois metros de altura. Seus olhos grandes e negros encaravam a cidade. Seu nariz: um buraquinho solitário no meio da face. Não tem orelhas, apenas ouvidos atentos. A boca, sem lábios e com o mesmo formato humano, parecia esboçar um sorriso. Sua pele, lisa e cinza, era interrompida apenas pelas sardas cinza escuro de suas bochechas. Seu cabelo era volumoso e preto. Talvez fosse uma peruca. Ele usava terno e gravata. Outras pessoas teriam notado que tratava-se de um Armani. Victor, desligado que era e se fazia parecer, não reparou que o ET era tão chique. O alienígena falou:

- Boa noite.

- Noite, seu OVNI. Vem lá de São Tomé das Letras? -- disse olhando de rabo de olho. Desconfiado, curioso e assustado.

- Eu venho de muito muito longe. Vocês nem conhecem meu planeta ainda, mas a estrela do meu sistema solar vocês conhecem. Chama-se Gamma Tauri.

- Então você é ET de fora de Minas?

- Eu venho de longe, de fora deste planeta.

Victor franziu a testa e espremeu os olhos:

- Como cê fala português?

- Eu estudei a lingua do seu povo através de transmissões de rádio e televisão. Hoje em dia é mais fácil obter transmissões em Português do que outras línguas. Português e Chinês, mas Chinês não dá para entender.

- Sei. ET do estrangeiro... O que veio fazer aqui?

- O seu planeta é listado como um dos poucos da galáxia com vida inteligente e que não teve contato com o mundo moderno. Sou um explorador! Gosto de ir a partes inexploradas da galáxia.

- Uai, então cê veio pro lugar errado. Por aqui já tá tudo exploradinho.

- Aqui é um lugar inexplorado pelos... -- parou para pensar, como se procurasse um termo que não fosse ofensivo -- pela União Planetária da Via Lactea. Vocês não tem contatos com seres de fora do planeta, tem?

- Olha, diz que tem. Eu nunca vi. -- o velho coçou a cabeça e olhou para cima, como se tentasse lembrar de algo -- Nesses meus 60 anos eu já vi muita coisa, mas ET nunca vi. Mas diz que se for em São Tomé das Letras à noite, tá cheio. Eu mesmo já fui, mas nunca vi.

- Então esta é a primeira vez que o senhor vê um ser vindo de fora deste planeta?

- Num sei se é. -- respondeu levantando as sobrancelhas e coçando a barba.

Victor abriu os braços, fez cara de dúvida e falou:

- Você tá falando aí que é ET, mas sei não...

Os dois se encararam brevemente. O silêncio entre os dois cresceu até se tornar incômodo. Victor voltou a falar:

- Se um bicho das estrelas tivesse vindo aqui mesmo, por que ele não ia falar com o presidente? Não ia passar na TV nem nada? Por que o ET ia vim falar comigo, um velho aposentado que passa o dia na praça do papa? Sei se acredito não.

- Eu sou um explorador! -- respondeu entusiasmado -- Venho a serviço da minha curiosidade. O problema é que a Terra está em uma área de reserva Universal. Pelas leis do universo, eu não deveria estar aqui. Se descobrirem, posso até ser preso! Como pode ver, não seria sábio da minha parte chamar atenção para a minha visita.

- Se você não queria chamar atenção, por que pousou aqui? No meio da cidade.

- Gosto da aventura! Aqui fico próximo da cidade, mas poucos percebem. Todos à nossa volta estão ocupados fazendo sexo ou fumando maconha. O homem do algodão doce, a única testemunha com credibilidade, parece que saiu para ir ao banheiro. É como se nós dois estivéssemos aqui sozinhos, assistindo a cidade. -- descansou seus grandes olhos sobre a cidade de Belo Horizonte -- Infelizmente não posso ficar muito tempo aqui. O truque para uma visita não confirmada é uma visita rápida!

- Vou tirar uma foto sua! -- exclamou animado -- Amanhã tá todo mundo sabendo, cê vai ver.

O extraterrestre não pareceu preocupado. Alinhou o terno e ajeitou o cabelo. Victor tirou do bolso um celular antigo. O velho mineiro lembrava que alguém já fotografou com aquele celular, mas não se lembrava como. Enquanto Victor aprendia a tirar fotos, o extraterrestre perguntou:

- O que os humanos fazem aqui a noite para se divertir?

- Uai, eu fico só aqui mesmo... Peraí! -- se interrompeu assim que descobriu como operar a câmera do celular.

O velho tirou uma foto, que saiu borrada e escura.

- Olha aí! -- mostrou ao ET -- Agora todo mundo vai saber!

- Parece a foto de um homem em frente a um caminhão de natal da Coca-Cola.

- É porque cê fica mexendo! Vou tirar outra.

A outra foto ficou igualmente ruim.

- Ah, que saco! -- disse Victor -- Esse celular também é velho. Uma merda.

- Olha, senhor... -- disse o ET esperando que o mineiro terminasse a frase.

- Victor!

- Senhor Victor, conversar com o senhor foi... -- pausou esperando que a palavra certa chegasse à sua boca -- interessante. O meu nome é Agodeus. Quem sabe nos encontramos novamente no futuro? Agora eu preciso ir. Foi um prazer!

Entrou correndo em seu disco voador, que despareceu no céu.

Pouco depois, o homem do algodão doce voltou a seu posto. Victor, agitado, mancou para perto do vendedor. Se movimentou o mais rápido que sua aleijada perna esquerda o permitiu:

- Luiz! Luiz! Você viu?! -- gritava

- Calma, seu Victor! Viu o que?

- O ET! O Agnaldo! Ele pousou aqui! Acabou de ir embora!

- Que ET?! Eu não acredito nessas coisas...

- Tô te falando! Veio um ET aqui agorinha mesmo! Enquanto cê tava fora.

- Lá vem ocê com historia...

- É sério! Tenho uma foto. Olha aqui!

Victor tirou o celular do bolso e mostrou a foto. Sua mão estava trêmula. O vendedor não conseguia ver direito. Tomou-lhe o celular:

- Para de tremer! Deixa eu ver isso aqui. -- olhou calado para foto durante uns vinte segundos -- ET nada, Victor... ET de terno?! Onde já se viu? E por que tá tudo borrado assim?

- A câmera é ruim e eu tô velho. Fico tremendo um pouco mesmo. -- não escondeu uma ponta de decepção no olhar -- Tava assustado também... Mas dá pra ver! Olha atrás aí o disco voador! Tem outra foto também!

Luiz passou os olhos na segunda foto, mas não mudou em nada sua postura:

- Foto de ET é sempre assim, né? -- disse com desdém -- Isso atrás não parece disco voador. Sabe o que parece? Parece aqueles caminhões que passam aí no natal, sabe?

- Da Coca-Cola?

Luiz deu uma gargalhada, acreditando que o idoso o acompanharia. Isso não aconteceu. Victor entristeceu o semblante e disse:

- Eu estou falando sério, pô!

- Você deve tá se confundido, Victor. -- disse o vendedor com as mãos nas costas do velho -- Se veio algum ET aqui, o povo aqui em volta não viu? Ninguém tá falando nada.

Victor ficou vermelho e esbravejou:

- Esse monte de moleque enchendo o cu de maconha e transando?!

- Calma. Aqui, toma uma coca. -- abriu uma lata por conta da casa e deu a Victor -- Deixa isso pra lá...

- Eu vi o Agnaldo! Eu juro! -- suspirou e tomou um gole no refrigerante que ganhou.

- Agnaldo Ferreira não era um colega seu?

- Não... -- disse cabisbaixo -- Era o ET!

- Tá bom, Victor. Você viu um ET. Mas agora acabou, né? O que há de fazer?

Victor levantou a cabeça, abriu um sorriso, e falou em tom de denuncia:

- Vou mandar as fotos pro Estado de Minas!

- Essa foto de um cara de terno na frente de um caminhão de Coca-Cola? Deixa isso pra lá. Olha, já tá ficando tarde. Eu já tô indo embora. -- era mais cedo que o usual -- Se quiser, eu te deixo em casa hoje. Cê qué?

- Tá bom. Mas eu juro que vi o extraterrestre!

Luiz não quis criar caso. Apenas deu tapinhas nas costas do velho e concordou.

Victor ajudou o vendedor a desmontar o carrinho de algodão doce e colocar no carro. Eles desceram a avenida Agulhas Negras conversando sobre futebol como velhos amigos. Ninguém nunca mais ouviu falar de Agodeus ou Agnaldo.

Posted Tue 04 Jun 2013 21:09:16 UTC Tags:

Ontem eu assisti ao primeiro filme de planeta dos macacos. Primeira vez em anos. Relembrei de uma curiosidade que já me atiçou antes: será que os macacos são inteligentes, mas não damos os devidos créditos? Como hoje me sinto mais intelectual do que era quando vi o filme pela primeira vez, resolvi estudar o caso. Bloco de notas caneta em mãos, fui ao zoológico de Belo Horizonte.

Examinei as celas. Para cada símio anotei um nome inventado e seus sinais físicos peculiares. Com isso eu pretendia identificar todos eles. Isso me permitirá, pensei, perceber os traços de personalidade de cada indivíduo. Será que cada macaco é único? Será que eles sabem disso? Eram perguntas que eu pretendia responder.

Depois de uma hora de observação, notei que um dos animais era diferente. Ele ficava mais quieto em sua cela. Olhava para mim como se soubesse o que eu estava aprontando. Aproximei-me.

Para minha surpresa esse macaco fez um gesto indicando que queria meu bloco de notas. Perguntei com os olhos, dedos e boca: você quer isso? Ele balançou a cabeça afirmativamente. Senti um calafrio subindo meu corpo. Dei a ele meu bloco e minha caneta.

Ele se prontificou a escrever tão cedo quanto possível. A cada traço que dava eu me mordia de ansiedade: o que ele está escrevendo? Será um texto? Uma pegunta? Ele sabe português? Após cinco minutos de espera, ele me devolveu o bloco. Teve o cuidado de mantê-lo virado para si enquanto me entregava. Não consegui dar uma espiadinha sequer antes da hora. Ele me olhava nos olhos e eu, aflito, correspondia. Só desviei o olhar quando chegou o momento de ler o papel. Respirei fundo e virei o bloco.

Um enorme pênis de macaco. Esse foi o desenho que ele fez. Nada escrito. Nada de português. Nada além de um grande e mal desenhado pênis. Olhei no fundo dos olhos do bicho, que me encarava de volta. Ele abriu um sorriso e começou a pular e gritar, feito macacos fazem. Batia nas grades e balançava daqui para lá, como todos os outros. Acho que estávamos certos o tempo todo: macaco é mesmo um bicho estupido.

Posted Mon 20 May 2013 07:12:34 UTC Tags:

Pousou no dedo indicador de Carlinha um lindo canarinho. Ninguém sabe onde passarinhos gostam de pousar, mas aquele parecia gostar de dedo. Todo bonitinho, abanava as penas do rabo enquanto cantava. Talvez ele nem goste de dedo assim, só quis agradar Carlinha. Ela passou a tarde toda estendendo o dedo e assoviando para os passarinhos.

Em um movimento fluido, a menina -- que não tinha mais de 7 anos --, deu um soco no pássaro. Caiu no chão sem vida. Pluft! Carlinha agachou-se e olhou bem de perto o passarinho morto. Levantou-se logo em seguida e correu chorando para dentro de casa.

"Mamãe! Mamãe! Matei um passarinho"

"Carlinha, o que aconteceu, minha filha?" disse a mãe com receio, pena, pesar e preocupação. Principalmente preocupação. Não há no mundo uma coisa que você possa fazer que não fará sua mãe preocupada. Ela pode não dizer, não demonstrar. Todavia, é essa a vocação de toda mãe.

"Eu não sabia que ele ia morrer, mamãe." disse Carlinha enxugando as lágrimas.

"Por que? O que você fez?"

"Eu dei um soco nele."

"Por que você fez isso, filha?" disse carinhosamente.

"Não sei.", falou Carla aos soluços, "eu queria ver o que ia acontecer. Ele pousou no meu dedo. Aí eu bati nele. Agora ele tá morto no chão" disse com uma lagrima escorrendo pela bochecha.

"Vai ver ele só machucou. Vamos lá olhar."

Chegando com a filha no quintal, a mãe verificou que ele estava realmente morto. Sem saber que conselho dar, ela apenas disse com dó:

"A gente não pode fazer isso com os animaizinhos, querida"

"Eu sei mamãe, foi sem querer!" respondeu chorando.

"Calma. Está bem minha filhinha. Chegou a hora dele. Todo animal morre uma hora mesmo." consolou enquanto adulava a filha.

Carlinha abraçou forte a mãe e perguntou:

"Até a gente mamãe?"

"Todo mundo, filhinha."

Carlinha abraçou a mãe mais forte

"Até você?"

"Até eu. Mas isso vai ser daqui a muito tempo. Quando mamãe estiver bem velhinha."

Carlinha já estava se recuperando do choque. Esfregou o rosto no vestido da mãe, enxugando as lagrimas que ainda persistiam lá. A mãe adulou a cabeça da filha enquanto isso.

"Mamãe, por que a gente morre?"

"Depois de muito tempo. Depois de brincar muito. Depois de fazer muitas coisas. Depois de anos, e anos, e anos, e anos. O nosso coração fica muito, muito cansado. Ele fica tão cansado que um dia ele dorme. Aí a gente também dorme."

"E o que acontece depois que a gente morre? A gente sonha?"

"Ninguém sabe, minha filha. Cada pessoa acha uma coisa. Você vai ter de descobrir por conta própria o que você vai achar."

Carlinha soluça com um nó que subiu a garganta e pergunta:

"E o que você acha, mamãe?"

"Eu acho que, depois que morre, a gente não sente mais nada. Não teme mais nada. Não vê mais nada. A gente fica em paz. Para sempre."

"Mas a gente fica feliz?"

"Não ficamos mais felizes, nem tristes. Sabe quando você dorme só um pouquinho a tarde e não lembra direito do que aconteceu?"

"Então, por que a gente nasce?"

"Eu acho que a gente nasce para poder aproveitar a vida. Para ficar feliz, para ficar triste. Todas essas coisas que a gente não vai poder fazer depois de morrer."

"Eu queria ser feliz o tempo todo!"

"Você lembra quando você queria muito aquela boneca de porcelana que a vovó te deu?"

"Lembro!", Carla abriu um sorriso, desabraçou a mãe e fez a cara mais bonitinha do mundo -- a mãe da Carla sempre enfatisa essa última parte quando conta a história.

"Você lembra quando você não tinha? Que ficou pedindo pra vovó? Você não estava tão feliz quanto quando ganhou a boneca, não é?"

"Eu pedia para vovó todo dia!"

"E você lembra que a vovó pediu para você ajudá-la no supermercado? Lembra que, depois de você ajudá-la, a vovó te deu a boneca?"

"Lembro! Foi o melhor dia da vida!", respondeu entusiasmada.

"Onde está a boneca agora?"

"Não seeei", disse com uma voz melosa e alongada.

"Você não está mais tão feliz com a boneca agora, né? Agora que você já a tem por vários meses."

"Ééé..."

"Felicidade, minha filha, é uma mudança. A tristeza também. A gente só repara na mudança. A sua felicidade foi quando você ganhou a boneca. Por isso agora você nem pensa nela mais."

"Mamãe!" disse a menina agitada.

"O que, minha filha?"

"Posso ir brincar lá fora na rua com os meninos?"

"Claro! Vai lá!"

Carlinha saiu correndo e gritando. A mãe ficou no quintal para providenciar o devido destino do pássaro morto. Estava bem satisfeita consigo mesmo. Mesmo que Carla não tenha entendido muito do que ela falou. A história ficou ótima. Digna de uma excelente mãe.

Sabe o que mais? Mesmo que não tenha sido exatamente assim, é assim que a mãe da Carla conta. Ela tem que se mostrar um pouco para as amigas, né? Afinal, ela já teve todas bonecas que poderia ter tido.

Posted Sat 27 Oct 2012 05:31:40 UTC Tags:

This blog is powered by ikiwiki.