Entre todas formas de morrer eu escolhi justamente esta. Talvez a mais dolorosa. Não tenho certeza. Como teria? Não experimentei as outras.
Meu cotovelo bate na garrafa d'água. Garrafa d'água cai. Pego no ar.
“Se você quisesse morrer, teria pego essa garrafa tão rápido?” — pergunta a garota.
“Se o que acabo de dizer é o que acredito como verdade, como eu teria essa resposta? Se, pensando o que eu penso, peguei essa garrafa em plena queda, você acha que eu saberia te dizer o porquê?”
“Parece um desperdício de esforço para quem vai morrer. Só isso.”
Realmente parece. Eu não vou morrer, mas que coisa! Eu já evitei a morte tantas vezes. De todas possibilidades, escolhi a mais dolorida. A mais demorada. Quem pode amar a vida tanto assim?
Naquela viagem que batemos o carro eu podia ter escolhido não colocar o cinto. Quando nadamos em mar aberto, poderia ter escolhido nadar mais um pouco. Naquela viagem que fizemos, podia ter tido coragem de saltar da pedra até a lagoa lá embaixo. De todos fins de semana, escolhi sempre o mais seguro. Como quem fez o contrário poderia amar mais a vida?
“Acho que só ama mesmo a vida quem já a viu escapando diante dos olhos.” — disse a menina.
Eu te amo. Isso não é o bastante? Desejo morrer por isso. Não é o suficiente?
Eu acho que vejo o futuro.
“Eu vejo o futuro, eu acho.”
“Vê nada. Você só pensa demais no que pode acontecer. Nada disso é real. São só possibilidades.”
Maldita garota dos meus pensamentos! Ela sabe mais sobre mim que eu mesmo. Se pudesse casava com ela. Se ela não estivesse na minha cabeça nem nada.
Karen, me desculpe por ter batido seu carro. A gente poderia ter dado certo, né? Não fosse a Cris…
Eu queria ser um cientista quando pequeno. O professor Pardal. Dentre tantas pessoas, por que fui me espelhar logo nele? Solitário que só. Nem Cristina, nem Karen. Ele não tem ninguém. Só suas invenções malucas, que funcionam apenas para os outros. Quem já viu um cientista pegando uma onda de 36 metros? Todavia, me pergunte quem bolou aquela prancha.
De todas formas de morrer, escolhi morrer aos 87 anos. É agora ou nunca. Quem vai morrer depois disso? Não há mais mulheres que eu possa dizer: eu te amo. Guardei essa frase por tanto tempo e agora não consigo mais usá-la. Viverei mais para o que? O que será feito nesses 3 anos? Nada. Vamos agora. Vamos para onde eu já poderia ter ido há muito tempo.
Não fui antes de teimoso. Quando me escondi atrás daquela caçamba. Pulei feito uma criança, enquanto os adultos brincavam de bang-bang. Poderia ter feito alguma coisa. Poderia ter salvo alguém. Acima de tudo, poderia ter morrido ali mesmo.
Cristina, você já me amou?
“Não.”
Cale-se voz ingrata. Eu sei que ela gostava de mim.
“De certa forma…”
Se nem você, Cris. Então quem?
Não tive muita escolha. Acho que a Camilinha foi a primeira que me amou. A gente se conectou pela Internet. Eu sempre fui um cara mais de Internet do que da vida. Ela me amou e eu, portanto, a amei.
Casamos na igreja de Lourdes. Tivemos três filhos. As vezes eu acho que eles entenderam mais da vida que eu mesmo.
Quando fiz 80 anos Camila me deixou. Fui ao seu funeral. Como poderia deixar de ir? Até pensei em não comparecer. Sou apenas um velho cansado. Quem sentiria minha falta? Com certeza não a Camilinha, que dispensou a minha presença antes dos 10 anos de casamento. Meus filhos choraram. Eles parecem entender a morte. Eu usei óculos escuros para disfarçar os olhos secos.
Quem diria que eu ficaria casado durante tanto tempo? O que acha?
“É surpreendente mesmo. Você nunca deu chance a ninguém.”
“O que você sabe sobre chance? Amei a todas como se fossem as últimas.”
“Esqueceste de amar como se fossem a primeira.”
Lá vem essa moça cheia de frasezinhas. O que isso significa? Eu tentei o que pude. Nossa filha sabe bem. Eu sempre estive lá para ela. Mesmo quando ela foi embora de casa. Não é culpa minha. Nem tudo é culpa minha!
“Ela vem para o seu funeral.”
Do que você está falando? Eu ainda vivo muitos anos neste hospital. É verdade que ando sem ânimo de rever todos dias as mesmas notícias de 50 anos atrás. Entretanto, permaneço vivo. Não preciso de uma outra alma para viver. A minha própria basta!
Por que não perdoei a Cris naquele carnaval que ela transou com o Flávio? Por que não perdoei o Flávio? Não namorei nenhum dos dois por conta disso.
Vivo nada. Meu coração não aguenta essa agitação toda de pegar garrafa d'água. Morro agora nas mãos de um doutor jovem. Minutos atrás, ele apalpava a bunda de uma enfermeira. Agora usa as mesmas mãos para tentar impedir que meu coração pare. Não tem jeito, doutor. Já estou de saída. A hora é agora.
Diga para a faxineira não se preocupar. Eu peguei a garrafa d'água em pleno ar. Não molhei o chão nem nada. Diga a ela que eu dei minha vida por ela. Diga que eu a amo.
“Doutor! Me ajuda!” — gritei enquanto puxava o jaleco dele pelo colarinho.